Carnaval, desigualdade, Spike Lee e o que mais couber...
Prof. André Araújo
Redação d'O Historiante
O carnaval, em cidades que vivem intensamente esta festa, é um prato cheio para análises sobre a sociedade em que vivemos. Uma sociedade desigual reproduz sua desigualdade em todas as suas instâncias, seja na economia, educação, cultura e quaisquer campos em que se possa separar e analisar. Em algumas áreas, a exclusão, violência e desigualdade de tratamento para com a condição humana são mais evidentes que em outras. É relativamente comum e compreensivo que olhos mais atentos para essa situação desigual se indignem e busquem esbravejar contra estes nichos de reprodução de desigualdades. Neste contexto, veio a Salvador o cineasta Spike Lee, para captar cenas do seu novo documentário chamado até então de “Go, Brazil, Go”, que deve discutir a questão racial num país que, dentre muitas questões, chama a atenção do mundo pelo crescimento econômico e grande quadro de desigualdade. O filme, que tem previsão de estrear no próximo ano, no festival de Cannes, na França, tem como foco central o atual cenário de avanços econômicos do país, com consequente protagonismo brasileiro no panorama internacional, mas que mantém um cenário de desigualdades sociais assentado em profundas desigualdades raciais, mesmo para um país que tem como principal marca a diversidade de raças. O que, obviamente, não significa harmonia.
Spike Lee, um cineasta americano engajado com questões de relações étnico-raciais, diretor de filmes clássicos sobre estas discussões, como “Febre da selva” e “Faça a coisa certa”, esteve em Salvador durante a “festa de momo” fazendo uma série de entrevistas com representantes da cena cultural soteropolitana, como Margareth Menezes, Carlinhos Brown e Ivete Sangalo (em recente entrevista ao jornal A Tarde, foram citados estes, mas dos bastidores já soubemos que representantes do circuito alternativo deverão ajudar a pluralizar e evidenciar outros agentes culturais da cidade), o presidente do Olodum, João Jorge, Lazzo Matumbi, Juliana Ribeiro, ativistas políticos e representantes das instâncias governamentais do estado e do município, como o governador Jaques Wagner, o prefeito ACM Neto e o vereador recém-empossado Silvio Humberto, que é também um dos fundadores do pioneiro Instituto Steve Biko (instituição que promove a difusão da importância das ações afirmativas, buscando incluir jovens negros nas universidades) e sem esquecer de personalidades negras como Mãe Stella do terreiro de candomblé Ilê Axé Opo Afonjá.
Recentemente o Historiante trouxe a temática do pão e circo como um problema que enfrentamos em relação aos poderes públicos. Enquanto áreas importantes do governo deixam a população desassistida, como na justiça, saúde e a educação, os estádios de futebol vão sendo erguidos com verba pública que parece transbordar de mananciais infinitos (clique aqui para ver o texto). Óbvio que o dinheiro público está assistindo o capital privado e ajudando a reproduzir desigualdades ao custo da negligenciação da população. O que fazer ou o que pensar sobre isso? É uma problemática legítima e importante a ser colocada e, sem dúvidas, rende muito “pano pra manga”, visto que são confrontados interesses privados (de grandes empresas) e o interesse público (aqueles torcedores e pagantes de impostos que consomem o futebol, e que, acredito, não abririam mão da paixão que esta "quase-religião" inspira em seus corações). Qual político tornaria explícita uma questão tão notória para críticos mais atentos e privilegiaria um dos lados em questão? Acredito que só um que queira assumir o risco de não se eleger ou reeleger!
Pois bem, o carnaval assim como o futebol, não acabaria por iniciativa individual, e nem de fato é necessário que acabe. Principalmente quando começarmos a lembrar que o carnaval soteropolitano, por exemplo, mesmo tendo sua faceta segregacionista, conserva, mesmo que atrás dos holofotes e câmeras das televisões, a sua popular insubordinação. Afinal, a luta dos afoxés para saírem nos circuitos e reafirmarem sua religiosidade em nome da manutenção da importância da diversidade religiosa da cidade é algo da ordem imperialista ou é interesse do setor privado do entretenimento da cidade? Com certeza não! Já ouviram falar na “Mudança do Garcia”? Pois é! Trata-se de uma iniciativa carnavalesca popular, onde as pessoas vão às ruas do circuito Osmar, no Bairro do Campo Grande (o circuito mais tradicional do carnaval), para protestar por melhores condições de trabalho, contra a corrupção dos governantes, contra impropérios cometidos por dirigentes dos seus times de futebol, entre outras manifestações. É só um exemplo para ilustrar que, mesmo com todos os problemas de desigualdade, há um interesse popular (portanto, legítimo) em viver certas extravagâncias na festa carnavalesca. É para enfatizar que a festa é consumida de formas distintas, e manifesta certo fascínio nas pessoas, tais quais outras manifestações culturais exercem.
Entretanto, como em toda casa, este palco de folias tem seus
problemas, pois, onde existem pessoas de carne e osso, onde interesses se antagonizam, faz-se necessário um diálogo/discussão para intermediar as diversas situações em
nome do coletivo. A intenção do Spike Lee, por exemplo, em vir ao Brasil fazer
um documentário, é justamente tentar perceber como um país, mundialmente
conhecido como o país da "democracia racial", e que vem ganhando projeção
internacional em função do seu desenvolvimento econômico, vem melhorando a
condição da população negra. Spike Lee tenta captar como no carnaval questões sócio-econômicas
vem sendo reproduzidas no “Reino de Momo”, visto que a relação entre ocupação dos
camarotes nas ruas, alargamento das cordas dos trios, falta de espaço digno para
a população que é pagante de impostos, refletem uma questão de classe e raça,
pois não são necessárias muitas horas de observação para se perceber que uma
maioria branca consome a parte alta dos camarotes, na altura dos artistas dos
trios, ou estão “protegidos” dentro dos blocos, enquanto uma maioria negra segura as
cordas dos blocos, sendo que esta segregação se faz mais evidente à medida que
analisamos os “blocos de elite” como os da banda Chiclete com Banana, Ivete, Claudia Leite,
por exemplo.
Até quando esta situação vai se manter? Não somos videntes
para prever tal situação. Hoje, explicitamente, a prefeitura já fala de
sustentabilidade do carnaval, pois já se sabe que os lucros com a festa não se
materializam em contrapartida social. Se, assentado na verba pública, o modelo
atual privilegia principalmente a população pagante dos blocos e camarotes é
possível pensar que, com a iniciativa privada, o carnaval tende a ser mais
democrático, mais plural? Acredito que não!!! Falar em boicote aos artistas do “Mainstream
Carnavalesco”, protestos, como a invasão dos circuitos, como na iniciativa da
subversiva “Mudança do Garcia” são possibilidades. Podem ser utopias, mas falar
em acabar com o carnaval? Acho que não! Nem o Thomas More (autor do livro A
Utopia) com sua sociedade perfeita, a “Cidade de Utopia”, pensaria em tal
heresia pelo bem público. Eu acredito que ele teria que dar um outro jeito no carnaval, ao invés de
extingui-lo!
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