Filmes - O Cheiro do Ralo


Prof.Carl Lima
Redação d'O Historiante

Quando falamos de filmes com roteiros baseados em obras literárias, é bastante comum ouvirmos os seguintes comentários: " O livro é muito melhor";  "A produção fílmica não retratou as personagens e o enredo como deveria"; "Gostou do Filme? Você precisa ler o livro". Não quero entrar, aqui, nessa discussão, mesmo porque compreendo que, independente da qualidade - obvio que existem bons e péssimos livros, como também boas e péssimas adaptações -, que cinema e literatura são artes diferenciadas e, por isso mesmo, têm linguagens e ritmos próprios. Assim, cobrar semelhanças e aproximações é incorrer em grande equivoco e consequentemente agir com injustiça.



Feito esse adendo, quero indicar essa semana a melhor das adaptações brasileira. Nada de Nelson Pereira dos Santos e seus clássicos da década de 1970,  a película  " O Cheiro do Ralo" (2007), dirigida por Heitor Dhalia, com roteiro baseado na obra homônima - primeiro romance - do conhecido e talentoso quadrinista Lourenço Mutarelli, lançada em 2002, narra o cotidiano de um sujeito da classe média paulistana que passa sua jornada diária negociando bugigangas em  um escritório de antiguidades, diga-se de passagem sem ter talento algum para atividade de antiquário. O ponto central da  narrativa é a existência de um problema com o ralo do banheiro da loja, proporcionando a todos que adentram ao ambiente sentir um forte odor. Buscando justificar aquela situação, Lourenço (Selton Melo), protagonista do enredo, explica-lhes a causa do mau cheiro, com a preocupação inicial de esclarecer que a "fedentina" advém do ralo e não de si.

Essa sua justificativa cai por terra, no momento que um de seus clientes, ao tentar negociar um produto - baralho antigo - e se sentir humilhado com a proposta financeira, pergunta-lhe que fedor era aquele. De pronto, escuta a resposta/justificativa. Num jogo de palavras, o cliente retruca: mas quem usa o banheiro? Lourenço afirma que ele, e num ato de vingança semântica regado a um bom silogismo, o vendedor, esclarece: então o cheiro é seu. Nota-se que, de uma posição inicial de negação e justificação, passa-se para  uma mistura entre o cheiro, o ralo e o homem. Dessa forma, mais do que um problema físico/hidráulico, o ralo torna-se um paradigma metafórico/psicologizante da personagem.

Mas, o que chama mais atenção no filme, inclusive para suscitar debates, é a demonstração da "coisificação" do ser humano, potencializada numa lógica onde a desvalorização do mundo humano cresce na razão direta da valorização do mundo das mercadorias. Nesse contraste matemático/econômico/social, Lourenço é representado como uma exacerbação do capitalismo, especialmente em sua faceta opressora que se materializa de cena em cena. Este, de maneira fria, sarcástica e perversa, ao negociar variados tipos de bugigangas (Relógio, Faqueiro, Baralho, Gramofone, caixinha de musica etc) com outras personagens, os humilha e detrata, negando o valor de uso, especialmente a conotação simbólica/afetiva, reconhecendo apenas o valor de troca (possivelmente cada vez mais baixo). A sensação de estar com o controle da situação e empoderado pelo dinheiro causa uma espécie de prazer efêmero, verbalizado numa de suas tiradas irônica " O poder é afrodisíaco".




O processo de desvalorização humana se estende também a outras de suas relações sociais: em nenhum momento ele chama os demais sujeitos por nomes, apenas os alcunha pela substantivação, assim temos: "A drogada"; "A noiva"; "O segurança", inclusive, quando surge a possibilidade de nominação, como na cena que dialoga com sua empregada (de quase uma década), ele a faz, mas descobre, seja intencionalmente ou não, que a chamava sempre pelo nome errado. Em outra situação, essa talvez a mais marcante, pois, delineia boa parte da narrativa, Lourenço cotidianamente visita uma lanchonete e se percebe interessado pela garçonete, ops, seu real interesse é metonímico - a parte pelo todo - para ele a personagem resume-se à Bunda. Inclusive ele pergunta o nome dela, e simplesmente reflete que seria impronunciável. Em uma de suas inúmeras divagações, conclui que seria pertinente pagar por aquela parte, mesmo que a garçonete nutrisse simpatia e desejos por ele, em mais um de seus aforismos: " é melhor pagar, antes que os convites sejam enviados para a gráfica"

Com um ar de comicidade e frieza, nosso anti-herói entra e sai de cena nos mostrando que a sensação do poder do dinheiro nos leva a caminhos estreitos que nos afunila até chegarmos a si, contribuindo para a reflexão se é possível o dinheiro comprar tudo e será que o que temos é realmente nosso? De um jeito ou de outro, aprendemos que "A vida é dura"


"Não há luz.
Era tudo mentira.
Desse lado ninguém espera por mim.
Ninguém me guia.
Pois o caminho não dá para errar.
Caio.
O caminho é a queda.
A queda me traga como um ralo.
(...)
Eu não quero ir.
Mas o abismo me engole.
Eu queria ficar."
Lourenço Mutarelli

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