A hora e a vez de Carolina Maria de Jesus: Um centenário de histórias




Fernanda Moreira
Redação d'O Historiante

"Eu disse: O meu sonho é escrever! Responde o branco: Ela é louca. O que as negras devem fazer... É ir pro tanque lavar roupa."

 "As oito e meia eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quanto estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo."

Em 1960, o Brasil e o mundo conheciam Carolina Maria de Jesus. A "escritora favelada", a escritora "vira-lata" e tantas outras alcunhas que marcaram o lançamento de "Quarto de Despejo", obra que abria o caminho para uma série de livros publicados pela autora. Esse ano comemoramos o centenário de seu nascimento e nada melhor do que falar um pouco da vida e do trabalho desta escritora. Silenciada, por vezes, pela história dos "grandes homens" ou sentenciada (apenas) sob o rótulo da escritora pobre e negra que conseguiu contar as suas mazelas, Carolina está além. É certo que não podemos esquecer do seu lugar e de seu discurso. Mulher, negra, pobre, mãe solteira, com pouquíssimo estudo, migrante, moradora de favela, doméstica e catadora de papel. Compositora, cantora e escritora. 


Carolina de Jesus nos presenteou com belos textos e uma obra riquíssima. Mais que um retrato, um sentimento. Uma forma de "ser-no-mundo". De nos contar e nos fazer viver uma São Paulo (ou um mundo) que classifica, separa e oprime. Sentir, sentir com as palavras de uma "escritora de si", de sua vida, de suas emoções, anseios e dores. Uma narrativa em que o centro e a periferia não são apenas temas, mais que isso, são uma forma de olhar para si, para a própria vida e para a cidade em que vivia.

Mais do que falar de Carolina, é preciso escutá-la:


 "Minha mãe queixou-se que eu chorava dia e noite. Ele [o médico] disse-lhe que o meu crânio não tinha espaço suficiente para alojar os miolos, que ficavam comprimidos, e eu sentia dor de cabeça. Explicou-lhe que, até os vinte anos, eu ia viver como se estivesse sonhando, que minha vida ia ser atabalhoada. Ela vai adorar tudo que é belo! A tua filha é poetisa; pobre Sacramento, do teu seio sai uma poetisa. E sorriu."

Entrar no mundo de Carolina é conhecer um mundo de poesia. Da dura poesia cotidiana. É percorrer as linhas do tempo para encontrar o destino da poetisa de Sacramento. Um destino escrito por linhas tortas desde 1914. A moça pobre, do interior de Minas Gerais, contaria sua trajetória e mostraria ao mundo não só as dores e angústias da pobreza, mas a beleza de seus textos, palavras e contradições. Palavras simples, no entanto, profundas e viscerais. Carolina implorava: "Hoje estou com frio. Frio interno e externo. Eu estava sentada ao sol escrevendo e supliquei, oh meu Deus! Preciso de voz!". Voz. A voz da mulher que queria ser dona de seu destino. Da mãe solteira de três filhos - filhos de três amores - que era a chefe da família. Que "não se adaptava a ser teleguiada" (parafraseando suas palavras). Uma voz que foi editada, moldada... cortada.

Era 1960. O mundo dividido. No Brasil, os "anos dourados" e as agitações políticas. As palavras de uma mulher, pobre, negra, doméstica e catadora de papel, representavam, por um lado, a "voz do povo". Por outro, a catadora de papel que conseguira sobreviver e crescer graças ao "progresso". "Progresso" que varrera do mapa a favela do Canindé, onde a escritora viveu. Eram as obras de "modernização" da cidade. Da "nova" São Paulo que crescia. 


"Descoberta" pelo conhecido repórter Audálio Dantas, Carolina era um tesouro. Tesouro, porém, que sempre se incomodou com a interferência de Audálio em sua obra. Questionava o seu papel de "tutor"... questionava os rótulos que recebia. Talvez soubesse da importância do jornalista para o sucesso de seu livro, no entanto, queria contar a sua história e seus sentimentos... sem o dedo frio da edição. Os cortes e a escolha do repertório deixaram de lado as contradições da escritora. Esconderam seus preconceitos. Suas diferentes opiniões. Definiram seu texto, sua fala, sob o viés da denúncia (apenas). Carolina estava contida num modelo que vendia e fazia sucesso. Conseguira sair da favela. Conseguira a fama tão desejada - Sim! Ela queria ser um escritora de sucesso. Porém, era dona do seu destino, desde que saiu de Sacramento e foi para São Paulo. Desde que assumiu a família. Desde quando aprendeu a se virar sozinha. 

Carolina não cabia naquela personagem...

Já não era mais pobre, mas também não era rica. Não tinha a "boa aparência" para ser aceita nas rodas sociais ou para ser uma grande escritora. Seu lugar era a favela, falava pelos pobres, então, o que fazia ali? Era a "escritora vira-lata". Carolina buscou independência. Publicou mais livros: "Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada", em 1961, ainda com a presença de Audálio Dantas. Além de "Pedaços da fome" e "Provérbios", de 1963, que publicou sozinha e não obteve grande sucesso. Já não interessava mais a história de uma "ex-favelada". Logo depois, 1964, chegava a ditadura e seus textos não eram "disciplinados". Foram considerados contestadores da ordem e panfletários. Seu lugar de escritora? Negado! Quem ousava ser Carolina? Quem era aquela mulher negra, vinda do interior e da favela e com pouco estudo? Era só mais uma insatisfeita, quase invisível, num "Brasil que ia pra frente"! Assim, Carolina caía no esquecimento. Ou melhor, no quarto de despejo dos silenciados. Morreu solitária em 1977.

A década de 1980 trouxe de volta o nome de Carolina. Houve uma publicação póstuma intitulada "Diários de Bitita". Primeiramente, publicado na França e traduzido no Brasil. Uma série de trabalhos e pesquisas foram realizados. Carolina ganhava um espaço.

Assim, em tempos de centenário, comemorar Carolina Maria de Jesus é ver uma série de possibilidades e caminhos em seus textos e diários. É reconhecer a riqueza literária da sua obra. A pluralidade e a estética dos seus escritos. A peculiaridade das suas contradições. É dar-lhe o merecido lugar de escritora. Escritora e ponto. Sem alcunhas. É reconhecer o destino da poetisa de Sacramento.

Carolina conhecia suas palavras. Seu lugar. Como dizia:
"Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que a espada. E as feridas são incicatrisaveis."
Ela sabia...





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